terça-feira, 15 de janeiro de 2013

MEU CABELO, O RACISMO E O MITO DA CAVERNA

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Mulheres ricas. E as pobres, onde ficam?

Meu cabelo, o racismo e o mito da caverna

15jan

Desde criança sempre tive um problema com meu cabelo. Nunca gostava de ficar penteando, cuidando muito. Minha mãe, coitada, sofria horrores tentando me convencer de que eu deveria andar sempre com o cabelo ajeitadinho, cheio de laços, fitas e demais apetrechos que surgissem. Era um cuidado que só.
Eu fui crescendo, me tornando uma mocinha. Pensa que isso mudou pra melhor? Engana-se quem pensou assim. Fiquei mais rebelde, e a paciência de minha mãe a cada dia indo embora. Foi quando ela resolveu largar de mão e deixar que eu decidisse o que faria com ele. Aí foi que fiquei feliz. Não precisava mais passar os finais de semana com o cabelo cheio de cremes e massagens com grandes promessas de cabelos macios, resistentes e belos (promessas que, até hoje, são feitas nas propagandas de shampoo e, apesar de todas as evidências em contrário, muita gente ainda acredita). Larguei de mão, fiz que nem minha mãe. Eu o usava como queria. Deixava crespo e natural como é, usava relaxamentos vários, e por aí segui minha sina.
Quando me enchi de penteá-los, resolvi cortar. Passei a máquina zero mesmo. Deixei estilo Ronaldinho, bem baixinho. Senti-me livre de verdade. Finalmente havia encontrado uma solução para minha briga eterna com meu cabelo.
Usei meu cabelo “joãozinho” durante muito tempo, por quase três anos. Achei que havia me livrado de alguns problemas. Ao pensar dessa forma, quem se enganou fui eu. Arrumei muitos outros. Por conta do meu cabelo cortado, levei várias alcunhas e rótulos. Houve quem pensasse várias coisas a meu respeito, exceto que eu fosse uma pessoa dona do próprio corpo, e que por isso tem o direito inalienável e inexpugnável de deixar o cabelo como bem entender. Nesse período eu trabalhava numa grande rede de supermercados, e alguns colegas gostavam do meu estilo, outros nem tanto e outros ainda odiavam. Eu não dava muito cartaz ao que diziam.
Lembro-me de uma situação que, hoje, me faz dar umas leves gargalhadas, mas que na época foi bastante desrespeitosa. Tinha um colega de trabalho evangélico, que antes de me conhecer, tirou várias conclusões ao meu respeito. Primeiro ele achou que eu era leucêmica. Magra, cabeça raspada, e sempre muito séria por conta do sofrimento com a doença. Depois, ele resolveu investigar e descobriu que eu era saudável. Partiu para uma nova conclusão. Decidiu que eu era candomblecista, havia acabado de fazer santo, e por isso, a cabeça raspada. Ele tornou a investigar e nada ainda. Por fim, resolveu me rotular como lésbica. Ora bolas, uma mulher de cabelo curto e com esse jeito (não sei qual, porque até hoje não sei qual o jeito de lésbica) só pode ser “sapatona”.
Pessoas como ele foram várias. Sofri horrores com meu jeito de ser, minha escolha e modo de agir perante os outros. Não ligava. Nessa época, não sabia que isso era efeito do racismo na minha vida.
Saí da rede de supermercado e fui admitida numa escola, foi quando resolvi deixar o cabelo crescer. Resolvi ficar com “jeito de menina”. Afinal de contas, a dinâmica agora seria outra, e não estava mais com saco pra ouvir piadinhas a respeito do meu cabelo.
Deixei crescer, mas ainda o usava bem curtinho. O achava lindo, e era mesmo.
O tempo foi se passando e então resolvi usar tranças afro e o famoso black power. Como? Isso mesmo. Resolvi mexer com as estruturas. Pois é, mexer com o cabelo é mexer com as estruturas de cabelo já postas. Os modelos eurocêntricos importados, os padrões de beleza idealizados por muitas mulheres de ter os cabelos lisos e sedosos, esvoaçantes. É a maldita ditadura da beleza, que diz que devemos ser lindas e belas a todo o momento. Só que nesse “linda e bela”, não inclui ser preta e usar cabelo crespo.
A primeira vez que pus o dread, as pessoas ficavam inquietas, me olhavam, questionavam e enchiam meu saco, de verdade. Era irritante. O pior aconteceu quando resolvi tirá-los. Aí é que a coisa piorou. As pessoas me fuzilavam com os olhos quando passava na rua (principalmente as mulheres) com aquele cabelo pra cima, aparentando estar despenteado, desarrumado, desajeitado, ou até mesmo inacabado. Isso mesmo. Inacabado. Pessoas próximas (ou não tão próximas assim) me davam dicas fantásticas de como usar o meu cabelo (até parece que eu havia pedido a opinião delas sobre o assunto). Houve quem perguntasse: “e agora vai fazer o quê, já que tirou as tranças? Vai relaxar, alisar, dar escova, pranchar, vai fazer o que mesmo?”. Como assim? Fazer o quê? Já fiz, vou deixá-lo sem dread. Parece até que meu cabelo está inacabado, precisando de um ajuste ou reparo, e só um salão de beleza pra dar um jeito. Houve quem me sugerisse ir a um salão de beleza em Salvador especializado em tratar cabelos de pretas e similares soltar os cachos. Mas que cachos? Meu cabelo é crespo, não tem cachos. E há quem se irrite quando digo que não vou nem gosto do tratamento dado por essa rede aos cabelos.
Fiquei nessa de pôr e tirar dreads. Adorei a sensação. Agora, depois de seis meses, resolvi tirá-los novamente e deixar meus cabelos naturais, lindo, solto e maravilhoso, pra espetar o preconceito de muita gente. Foi quando uma conhecida (porque, de amiga e colega, ela não tem nada) me viu, disse que eu estava linda, meu cabelo tava massa e bom de ir ao referido salão. Ãhn? Como assim, ir ao salão? Pois é, menina, eu fui lá. Eles vão deixar seu cabelo massa. Vão cuidar e deixar show de bola. Vão cuidar? Como assim, meus cabelos não estão cuidados, por acaso? E bom de ir ao salão, por quê? É por que ele está crespo?
Isso parece o Mito da Caverna, de Platão. Quando uma criatura sai da caverna e descobre que no mundo lá fora existe luz e está para além das suas meras sombras. A criatura que saiu quer voltar e tentar convencer os outros de o que ele agora conhecera é melhor para suas vidas. A situação se repete com a minha conhecida (a que não é nem amiga, nem colega, e sim uma enxerida) que me insulta ao querer me convencer a ir a um salão de beleza tratar meus cabelos (como se estes estivessem maltratados). Parece até que ela descobriu um grande feito e quer me salvar das trevas em que vivo. Aliás, ela só, não. Todas as mulheres, quando me olham na rua, ficam a pensar que em tempos de prancha, escova progressiva, regressiva, burra, inteligente e congêneres, (como bem diz o pessoal do Bando de Teatro Olodum no espetáculo Cabaré da Rrrrrraça) é que sofro e insisto em usar “esse cabelo”. Ora bolas, devo ser mesmo uma pobre coitada que não teve a oportunidade de conhecer as facetas estéticas para um bom cabelo crespo – ou até mesmo uma teimosa que não quer aceitar a solução que os outros encontraram para mim. Abra o olho, desgraçada!
Pode parecer engraçado relatar aqui situações como essas. Vocês até podem achar que estou exagerando. Podem crer que não. Situações como essas, infelizmente, são corriqueiras no meu dia-dia.
Dia desses, uma colega de trabalho soltou uma pérola enquanto conversávamos sobre um assunto qualquer que não me recordo no momento e que também não vem ao caso. Ela disse o seguinte: “Paula usa esse cabelo assim porque ela quer. Pois se ela der uma escova ou um alisante, ficará lindo”. Então, quer dizer que meu cabelo é feio do jeito que está? Não entendi, ou melhor, entendi. Entendi que os efeitos do racismo na nossa vida são nefastos a ponto de dizer como as pessoas devem se vestir, se comportar e até mesmo usar seu cabelo (e o mais grave disso tudo é que essas palavras foram ditas por uma mulher tão negra, pobre e favelada quanto eu, o que mostra o quanto o racismo é odioso ao fazer com que as suas vítimas pensem e ajam de acordo com os seus beneficiários).
Já tiveram a pachorra de me perguntar se uso essas tranças para recuperar o cabelo quimicamente maltratado. Opa, como assim? Certa vez, uma mulher infeliz com os resultados obtidos com seu cabelo depois de tanto tratamento químico utilizado veio me perguntar se ela usasse essas trancinhas que eu usava, ela recuperaria seu cabelo e este ainda ficaria vivo, volumoso, grande, bonito como o meu. Eu ironicamente respondi: seguinte: não sei se o resultado obtido com o uso das tranças ou dreads no seu cabelo será o mesmo que o meu, até porque eu uso essas tranças, primeiro por imensa simpatia e identificação com tais, segundo por uma posição política que acredito e defendo de não querer alisar os cabelos por achar que esse é o único modo de usá-los e conceber meu cabelo como bom e belo. Algo mais?
Isso de engraçado não tem nada, porque atitudes racistas começam com piadinhas, brincadeiras (que de brincadeiras não tem nada) fora de hora, comentários desnecessários e otras cositas más.
O cabelo faz parte da autoestima de qualquer pessoa, e é justamente aí que o racismo começa a nos destruir enquanto pessoas que somos. Porque ouvimos a vida inteira dizer que somos feias, não servimos pra nada, não somos o tipo favorito de beleza. E no caso das mulheres, é ainda pior. Nós, mulheres, sofremos duplamente com o racismo por sermos negras e não ser o tipo de mulher desejável para um homem (não somos o tipo de mulher feita pra casar). Resquícios do nosso passado escravista.
Quantas vezes vocês ouviram dizer quando uma mulher se casa com um homem ou vice-versa e este ou esta é negra (o) e resolvem ter filhos: “Vê se não vai inventar de ter filhos, pra não nascer uma menina e você ter de passar henê com seis meses de nascido”?. Sei que isso parece absurdo, mas já cansei de ouvir coisas do tipo por aí e as pessoas acharem normal e até mesmo engraçado.
Coisas como essas acontecem diariamente no nosso cotidiano, de uns nem tanto, em outros em demasia, e alguns deixam passar despercebidos. Alice Walker foi bem feliz ao dizer que “Cabelo oprimido é um teto para o cérebro”. Ela passou a se amar mais após descobrir que o seu cabelo é voluntarioso. Pode também ser macio e flexível. Por que o nosso também não pode? Ele só se faz lindo quando está úmido, lambuzado com aquele monte de creme e pastas para alisamento que nos recomendam? Meu cabelo é lindo, volumoso e perfeito, pois me faz sentir como realmente sou. Cheia de certeza, audácia e é incrível. Incrível por me fazer acreditar em todas as minhas certezas, que antes eram tidas como dúvidas que me atormentavam, inclusive, nas minhas decisões cotidianas. Meu cabelo aos poucos acabou com minhas dúvidas mais cruéis. Ele me fez ter certeza sobre minha sexualidade. O quê? Como assim? Isso mesmo, antes me amargurava por ser mulher e ter um cabelo “difícil” de ser cuidado. Por muito tempo quis ser um menino pra cortar o cabelo e não ter trabalho com ele. Isso foi o que o racismo me fez acreditar por muito tempo.
Fatos como esse me remetem à época em que tinha nove anos e uma emissora de TV exibiu uma novela chamada Felicidade, com Toni Ramos e Maitê Proença como atores principais. Lembro como se fosse hoje do cabelo esvoaçante da Maitê na época. Eu nunca fui muito religiosa, e isso não é de hoje, é desde a minha infância. Eu, antes de dormir, sempre rezava, agradecia pelo meu dia e pedia bênçãos para o dia seguinte. Entre as bênçãos que pedia, estava o desejo de ter um cabelo igual ao da Maitê. Eu suplicava em orações para amanhecer com aquele cabelo tão desejado por mim. Confesso que nunca havia relatado ou sequer comentado essa situação com ninguém durante toda minha vida. Eu sentia vergonha por um dia ter imaginado ou me sentido assim, mas entendi que também fui vítima do racismo, afinal de contas eu nunca estive imune aos seus efeitos.
Vocês assistiram ao filme Preciosa? Para quem já assistiu, lembram a cena em que a personagem principal fica de frente ao espelho e se vê loira, de olhos azuis e cabelos lisos e sedosos? Pois é, guardadas as devidas proporções, eu também já tive meu momento Preciosa na vida. O racismo me tirou o ânimo jovial de ser feliz e acreditar que sou e seria linda assim como sou hoje. Mas isso demorou longo tempo pra ser descoberto.
E é nisso que acredito e defendo hoje onde quer que eu vá e com quem quer que seja. Não é porque eu não seja o padrão feminino europeizado de beleza instaurado que eu não seja bela. Não é porque eu não seja branca, alta, magra, linda e loira, uma Gisele Bündchen da vida, que eu não seja bela. Afinal de contas, a mulher só é bonita caso se enquadre nesse biotipo estigmatizador? Pois sou mulher, negra e bela como sou. Com meu cabelo crespo e natural, com minhas tranças afro, meu dread,ou até mesmo alisando os cabelos, desde que eu não ache que alisar os cabelos seja a única forma de conceber meu cabelo como

3 comentários:

  1. Simplesmente Fantástico! Ao ler soou como um desabafo e um dos melhores que já li até hoje.
    Obrigada.

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  2. Gosto das socializações dos meus textos nos espaços virtuais. Só creio que a ética nos diz que temos de citar as fontes de construções alheias.
    Fonte do post: www.escrevivencia.wordpress.com
    Autora: Paula Libence (essa que vos fala)

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    1. Paula,
      desculpe, sempre procuro fazer o correto. Mas por falha nossa saiu sem citar a fonte. Devido a indignação com o fato ocorrido com a marca de cosmético CADIVEU, e o seu texto que trazia tudo o que queríamos dizer.. Mas irei corrige o meu erro. E mais uma vez desculpa.Atenciosamente, Graça Santos - Afro N`Zinga Cabelo e Arte.

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