domingo, 18 de novembro de 2012

MinC e produtores culturais negros



Os editais do MinC para produtores culturais negros em debate

 

Em semana repleta de eventos da cultura afrodescendente, artistas discutem a medida e se dividem entre elogios e temores de ainda mais segregação

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Zózimo Bulbul, um dos principais ativistas do movimento negro na cultura brasileira Foto: Simone Marinho / Agência O Globo
Zózimo Bulbul, um dos principais ativistas do movimento negro na cultura brasileiraSimone Marinho / Agência O Globo
Rio - Desesperado com a falta de recursos, o imperador romano Vespasiano decidiu tributar o uso dos banheiros e cunhou a máxima “dinheiro não tem cheiro”. Como também escorre pelas mãos, dinheiro poderia até ser tomado por água, inodora e incolor que é. Mas dinheiro possui cor. É verde, quando dólar; é uma grana preta, quando alta. Mas nem todos veem a cor do dinheiro, em especial para custear a produção cultural. Ainda mais se forem negros.

A ministra da Cultura, Marta Suplicy, calcula que os produtores culturais negros recebam menos de um décimo do dinheiro incentivado (com origem no orçamento público ou em recursos de empresas deduzidos do imposto de renda) que banca as artes no país, cerca de R$ 1,2 bilhão por ano.
— Os projetos que os produtores negros mandam são muito poucos, porque o acesso aos meios são mais restritos. Quando conseguem formular projetos, não conseguem captar. Ninguém quer patrocinar. Eles não têm condição de obter patrocínio — justifica Marta, ao comentar a série de editais que lançará depois de amanhã para estimular a produção de artistas negros em todo o país.
Na data em que se comemora o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, 20 de novembro, feriado em 780 cidades, o Ministério da Cultura lança uma série de editais direcionada aos produtores e criadores negros, em cerimônia no Museu Afro Brasil, no Ibirapuera, em São Paulo, às 11h.
Com os editais, o Ministério da Cultura espera estimular a formação de novos escritores, elevar o número de pesquisadores negros e de publicações de autores negros, incentivar pontos de leitura de cultura negra em todo o país, premiar curtas dirigidos ou produzidos por jovens negros na faixa de 18 a 29 anos, investir em criação, produção e fazer com que artistas e produtores negros ocupem palcos, teatros, ruas, escolas e galerias de arte de todo o país.
A dificuldade de organizar programas relacionados à cultura negra é relatada por produtores de eventos que começam nesta semana no Rio, que incluem desde um festival de música a um encontro de cinema afro, ambos com convidados internacionais, passando por palestras na Bahia e em São Paulo com ícones da cultura negra mundial, como a historiadora norte-americana Angela Davis, famosa por suas ligações nos anos 1970 com o grupo radical Panteras Negras, e a missionária Bernice King, filha de Martin Luther King, o líder da luta pelos direitos civis nos EUA.
— Sou persistente. Bato na porta, não desisto. Como afrodescendente, se não me salientar, eu desapareço. Tenho de estar o tempo todo discutindo, debatendo. Se a Marta pegou o mote do ex-ministro Gilberto Gil de fortalecer a inclusão, só posso bater palmas para ela — diz o ator e cineasta Zózimo Bulbul, que organiza no Rio um festival de cinema com diretores da África e do Caribe que exibirá mais de 40 filmes.
Recém-engalanado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, por seu papel na valorização da cultura afro-brasileira, o pesquisador e compositor Nei Lopes, 70 anos, afirma que a exclusão dos negros nos “arraiás” da cultura é incontestável.
— Quando aparecemos um pouquinho, é sempre como objetos e não como sujeitos da produção cultural. O “povo da cultura”, os que se beneficiam dos bons patrocínios e sabem dos famosos editais, são, de modo geral, gente com boas relações familiares, que vêm de berço; e aí fica tudo mais fácil. Se você vai fazer um filme e o filho do dono do banco estudou com você no colégio ou a filha do grande empresário foi sua namorada, as possibilidades de suporte financeiro são milhões de vezes mais tranquilas — analisa Nei.
Discussão racial
Para quem teme a intolerância na discussão racial, Bernice King recebe prêmio e ministra palestra em São Paulo amanhã e terça. Para quem acha que falta radicalidade, Angela Davis faz conferência na quarta, na Universidade Federal do Recôncavo Baiano, em Cruz das Almas, com o tema “Gênero, raça e classe, tríade inseparável no empoderamento da população negra”.
Professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ, o escritor e comunicólogo Muniz Sodré, que lançou recentemente o livro “Reinventando a educação” e é tema de seminário em homenagem aos seus 70 anos, acredita que os editais em favor dos negros são necessários como forma de reparação.
— Sou baiano e outro dia fui dar uma palestra em uma universidade de lá. A política de cotas modificou a cor da audiência. Antes não era assim. Se deixar a política de financiamento público das artes na mão dos grandes produtores, eles vão querer tudo para eles. É assim que pensam. Acham que cultura negra é folclore, um dinheirinho ali para capoeira, outro para quilombola. Mas não para concorrer com eles, grandes produtores, no cinema, por exemplo.
O cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo, cujo filme mais recente é “Raça”, a ser lançado em circuito em 2013, no qual mostra a rotina de cinco personalidades negras para abordar suas diferentes relações sociais em razão de renda, educação e atividades política e cultural, aponta a existência no panorama nacional do que chama de “censura branca”.
— Nossa estética é colonizada, ideologicamente branqueada. O branco é a unidade, representa o ser humano. O negro é o subalterno e o gueto. Quando bato na porta atrás de patrocínio, elogiam meus filmes, o papel que exerço etc., mas, na hora de liberar o dinheiro, nada — reclama.
Connie Lopes, diretora-geral do Back2Black, festival internacional de música com astros negros que ocorre de quinta a domingo na Estação Leopoldina, já na sua quarta edição, declara que foi muito difícil alinhavar cada uma delas:
— A questão do patrocínio é sempre complicada. Uma luta que se vence a cada ano. É um evento orçado em R$ 3,5 milhões, com 4 mil pessoas por dia na plateia e 2 mil pessoas na organização. No começo, quando falávamos que faríamos um festival voltado para a arte negra, torciam o nariz.
A crítica ao Back2Black é que a faixa de preços dos ingressos, entre R$ 75 e R$ 150, acabaria levando a uma plateia com mais brancos do que negros.
— Já houve até gente panfletando essa crítica na porta. Não acho o ingresso tão caro, mas nosso custo é. Estamos trazendo, por exemplo, um grupo (Jupiter Okwess International) de Kinshasa, no Congo, país arrasado pela guerra. O cachê não é alto, mas o custo da logística para trazê-los é absurdo. Já pensamos em criar algum tipo de cota social, algum tipo de ingresso mais barato para negros. Mas é difícil definir quem tem direito a isso — comenta Connie.
O cantor e compositor Seu Jorge, que lança esta semana o DVD “Músicas para churrasco vol. 1”, gravado no Dia da Consciência Negra de 2011, vê uma ponte se consolidando entre o drama mais profundo do passado e a situação redentora que projeta para o futuro.
— Há um negro em construção, uma coisa nova surgindo no Brasil. Se você reparar, os Três Poderes são representados por segmentos importantes do povo brasileiro. No Legislativo temos um nordestino, no Executivo, uma mulher e, no Judiciário, um negro. Sampleando o discurso de posse do Lula, o Brasil está se reencontrando com o Brasil. E o negro está se reconstruindo aí, na batalha por isso.
O medo da racialização
O sociólogo Demétrio Magnoli, autor do livro “Gota de sangue — História do pensamento racial”, no qual procura demonstrar que o “mito da raça foi um engano inventado”, é um dos principais oponentes da política de cotas.
— Os argumentos da ministra, risíveis, nem mesmo merecem contestação. As políticas raciais obedecem a uma doutrina de racialização e se valem dos mais diversos pretextos. A portaria ministerial nada tem a ver com um suposto preconceito contra produtores culturais “negros”. Ela se inscreve na lógica política que cria cotas raciais na graduação universitária (sob o pretexto de que estudantes “negros” têm desvantagens iniciais) e, agora, na pós-graduação, sob qual pretexto, mesmo? — critica.
Para Magnoli, os editais seguem a lógica que cria cotas no funcionalismo público e as estimula no mercado de trabalho, produzindo segregações raciais entre trabalhadores das mesmas faixas de renda “sob o incrível pretexto de combater desigualdades sociais”, diz ele.
O termo racialização surgiu na embate envolvendo a ação afirmativa e a política de cotas. Significa o reconhecimento da raça como elemento a ser pesado na distribuição de justiça e de bens ou privilégios de Estado em suas políticas.
O futuro secretário municipal da Cultura do Rio de Janeiro, Sérgio Sá Leitão, também tem dúvida sobre a eficácia dos editais:
— Há o risco de estimular a discriminação, em vez de combatê-la. Há outras formas de democratizar o acesso, promover a inclusão e valorizar a contribuição dos criadores afrodescendentes à cultura.
Os militantes do movimento negro rebatem as críticas à possibilidade de os editais produzirem mais segregação.
— Os perigos da racialização são muito menores do que o racismo brasileiro, que, apesar de o conceito de “raça” estar ultrapassado, está aí, existe e opera — analisa Nei Lopes.
A arte negra em destaque
Back2Black: Da próxima sexta a domingo, o festival reúne Lauryn Hill, Nneka, Martinho da Vila, Hugh Masekela, Naná Vasconcelos, Emicida, Gal Costa e outros na Leopoldina.
Cinema Negro: O 6º Encontro Brasil, África & Américas vai de quarta ao dia 29 no Centro Afro Carioca de Cinema, na Lapa.
Silas de Oliveira: Dona Ivone Lara, Monarco, Sombrinha e Dudu Nobre homenageiam o sambista, morto há 40 anos, terça no Imperator.
Para Zumbi: Amanhã, Farofa Carioca, Elza Soares, Cláudio Zoli e Gabriel Moura fazem show na Fundição.
Colaboraram Cristina Tardáguila e Leonardo Lichote


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