quarta-feira, 29 de setembro de 2010

“Ruim” que nada, cabelo bonito é o seu

“Ruim” que nada, cabelo bonito é o seu

Jamile Chequer

Se você escuta a música “Chapinha”, do MC Franc, e fica arrepiada com o refrão: “Ih, choveu, cabelo encolheu”; melhor cantarolar a música do Max de Castro: “Muita gente implica com meu pixaim. Mas o que me implica é que o cabelo é bom. E quando isso me irrita vai ter briga sim. Porque não aceito discriminação. Alisa ele não,você é meu nêgo do cabelo bom”.

Se tudo fosse uma preferência musical, seria mais fácil, não é? Faz parte do ideal, aquelas mulheres magras e homens sarados. Isso faz com que você questione: “mas o que há de errado comigo? Não há nada de errado com você, nem com o resto da população que não consegue – e cá entre nós, nem deveria tentar – alcançar esse patamar.

A situação fica ainda mais complicada quando, além de “não se encaixar no perfil perfeito”, você ainda passa boa parte de sua vida escutando que seu cabelo não é “bom”. A cultura do tal “cabelo bom” tomou conta da sociedade de tal forma que o “ideal” no imaginário são madeixas compridas, impecavelmente lisas, que balançam ao vento. Essa visão de “beleza” tem origem no passado escravista e nas relações de dominação que se desenvolveram como conseqüência disso. “O cabelo do negro, visto como ‘ruim’, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. É expressão do conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil”, revela Nilma Lino Gomes, coordenadora do Programa Ações Afirmativas e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ela explica que cabelo crespo e corpo podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil.

Como um espelho da negritude

A Raça surgiu há dez anos, em 1996. A idéia era fazer um produto que fosse um espelho para a população negra, de forma que pudesse despertar sua autoestima. “Num primeiro momento, o negro brasileiro precisava desenvolver sua auto-estima, que hoje vemos como conquista e sucesso. Para despertá-la, eram necessários produtos que fizessem com que a pessoa se visse na sociedade”, lembra Fran Oliveira, editor-chefe da revista.

Fran explica que, durante muitos anos, o mercado de revistas acreditava que negro(a) na capa não vendia. “Havia essa resistência, diziam que o único negro que poderia ter apelo na capa seria o Pelé.” A revista Raça tentou quebrar esse paradigma. “O Brasil tem muito esse preconceito velado”, revela.

Para Fran, a negritude da mulher brasileira não está mais no cabelo. “Acho que o cabelo da mulher negra pode ser usado da forma como ela quiser. Hoje, é uma questão de praticidade. Aquilo que ficar bem, você usa”, conta. “Estamos fazendo uma matéria sobre usar cabelo crespo ou liso. Ambos são importantes. A questão não faz mais parte dessa discussão de embranquecimento ou de reafirmação de negritude. A questão da negritude está na consciência. E isso é muito mais importante do que bobs, escovas ou qualquer outra coisa.”
Juntos, possibilitaram a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra. E para que se compreenda o que as pessoas negras pensam e sentem quando mudam os seus cabelos, é preciso conhecê-las e entender como se dá o processo de construção da identidade negra no Brasil. Não basta tecer juízos precipitados, afirmando que a pessoa “embranqueceu” ou “tem uma consciência política” se usa esse ou aquele tipo de penteado.

“Um dos efeitos do racismo é o ‘patrulhamento estético’ que recai sobre os negros, sobretudo as mulheres. Há uma cobrança estética muito mais dura sobre os negros quando comparamos com aquela que incide sobre pessoas de outros grupos étnico-raciais. Vale a pena questionar: Por que negros e negras não podem se expressar esteticamente livres dos olhares de julgamento da sociedade?.”

Por isso, para Nilma, que também é autora do livro Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, mudar o cabelo pode ter vários significados: a tentativa de sair do lugar de inferioridade imposto pelo racismo ou até mesmo a introjeção deste(a); um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo e a presença de uma identidade negra positiva, por exemplo.

Como espaço importante na sociedade, a escola vem a ser usualmente palco de reproduções de racismo e a referência negativa ao cabelo afro é a marca fenotípica mais explicitamente mencionada nas situações de ofensas raciais. A constatação de Ângela Maria dos Santos, professora substituta da Universidade Federal do Mato Grosso e especialista em Relações Raciais na Educação, mostra o quanto a reprodução do “cabelo ruim” pode trazer conseqüências.

Ângela fez pesquisa sobre as relações raciais entre estudantes negros(as) e não-negros(as) em duas escolas públicas no Mato Grosso. Durante cinco meses, observou o cotidiano dessas relações entre cerca de 223 alunos(as). “Incontestavelmente, existe uma forma naturalizada em que se dá o racismo na escola. A naturalização do preconceito racial alimenta relações de poder desigual entre alunos brancos e negros”, afirma.

Porém, ela observou que a cor deixou de ser, em primeiro plano, a marca perceptível da aparência física utilizada pela pessoa que discrimina. O cabelo viria como uma característica física mais funcional para se discriminar racialmente. A explicação para isso seria o fato de que, no imaginário, estereotipar, fazer comentários negativos acerca do cabelo, parece não constituir uma forma aberta de racismo, diferentemente da cor da pele.

“Percebi que, muitas vezes, as ofensas raciais eram apegadas ao cabelo. Analisei da seguinte forma: quando não se refere à cor, fica-se isento de um comportamento racista. É como se as pessoas ficassem mais à vontade. E os alunos falavam abertamente sobre isso. Faz-se uma ligação muito clara do negro a coisas. Quando você faz referência do cabelo do negro à planta espinhosa, está tirando a sua feição humana. Para se ter idéia da força do racismo. Não se encontra hoje teorias coisificando os negros, mas, no entanto, no discurso, nas falas de nosso cotidiano, elas estão presentes. E isso na fala de crianças e adolescentes”, constata Ângela.

Foi por conhecer muito bem o que é ser alvo desse tipo de discriminação que a jornalista Neusa Baptista Pinto escreveu o livro Nosso cabelo crespo não é ‘”ruim”. Ela concorda com Ângela que a escola é um local onde a criança negra sofre grande carga de preconceito racial. “Os apelidos, as comparações com animais (principalmente o macaco) e as referências ao cabelo crespo, como bombril e outros nomes pejorativos, são comuns no ambiente escolar”, diz.

Em seu livro, conta a história de três meninas que, ao se depararem com o preconceito contra o cabelo crespo em sala de aula, assumem uma postura positiva em relação ao assunto e conseguem dar a volta por cima. “É uma maneira de mostrar à criança que seu cabelo é bonito, sim, e deve ser aceito como é. A pergunta que precisa ser feita é: ‘quem disse que o cabelo crespo precisa ser alisado para ser bonito?’”, questiona.

Neusa conta um pouco da sua própria história. Ela diz que só foi usar tranças rastafári em 1998. “Um antigo sonho que eu nunca tinha conseguido realizar.” Isso causou uma transformação em sua auto-imagem. “Um dia, resolvi usá-lo natural. Quem imaginaria isso poucos anos antes? Foi um momento de intenso crescimento pessoal. Então, percebi a importância do cabelo na vida das mulheres negras, como ocupa um espaço privilegiado de cuidados, preocupação, e torna-se, muitas vezes, um “problema” a ser resolvido e não compreendido em sua forma de ser. Desde então, não deixei de alisar meu cabelo quando quero, mas não tenho mais vergonha como tinha antes”, conta.

A escola têm papel fundamental nessa construção e auto-aceitação. Durante sua pesquisa, Ângela – que também é técnica da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, onde é responsável por encaminhar a formação de professores(as) com relação à abordagem da discriminação racial nas escolas – presenciou várias vezes crianças e adolescentes zombando de cabelos e outros traços de colegas. Em uma delas, a aluna alvo das “brincadeiras” teve que se trancar no banheiro. Depois foi até a coordenação reclamar. Seus(as) colegas foram chamados, assim como os(as) responsáveis, para uma conversa com a diretoria. Mas esse exemplo é menos comum do que deveria. “Em geral”, diz Ângela, “ou as escolas não sabem abordar essas questões ou, por não acharem que é uma questão tão importante, silenciam, e essa é uma forma de autorizar a discriminação”, aponta.

Ela afirma que parte da solução está na disposição do(a) professor(a) em fazer discussões sobre essas questões. “Não costumamos discutir. Ao não discutir, temos a tendência de não perceber, e não perceber é o caminho para negar”, indica Ângela.

Neusa conta que percebe, ao conversar com professores(as), que esse é um assunto que preferem evitar. Alguns(as) até encaram as manifestações racistas dos(as) estudantes como brincadeiras inocentes. “Creio que, no fundo, muitos sabem que não é bem assim. O racismo está presente nas falas das crianças e precisa ser desmascarado. Reunida com professores, narraram dezenas de histórias de racismo, tanto referentes às suas próprias vidas como as presenciadas em sala de aula. Então, dá para identificar o racismo, sim. Só falta saber como abordá-lo”, explica.

Para Ângela, é preciso investir em capacitação de professores(as) de forma que possam intervir pedagogicamente. “Algumas intervenções acontecem. Normalmente dizem: “Não faça isso”, e acabou. È uma intervenção de censura e de forma pontual. Não aproveita a situação para fazer uma discussão de conteúdo pedagógico”, lamenta.

Um ganho para tratar o assunto é a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas da educação básica. E há várias escolas que fazem trabalhos e projetos importantes. “Estão sendo feitas capacitações por setores progressistas do Ministério da Educação e Cultura; por várias administrações estaduais e municipais; pelos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros existentes; no Brasil e pelo movimento negro. É um processo longo e, muitas vezes, demorado. Mas não há como negar que estamos avançando”, ressalta Nilma.

Além da escola, um espaço de valorização importante é a família. Nilma explica que muitas famílias negras educam as crianças desde cedo a gostarem de si mesmas e da sua estética. Poucas são as que não agem dessa forma. Ela diz que é preciso superar a imagem estereotipada da família como o principal lugar onde o(a) negro(a) aprende a rejeitar o seu corpo e a sua raça. “É certo que as famílias negras vivem o conflito rejeição/aceitação do ser negro e transmitem isso para as novas gerações. Mas para compreender a profundidade dessa questão, temos que ponderar que não acontece por um motivo pessoal, mas por repercussão do racismo na esfera privada. E que tal comportamento não é geral. Se assim o fosse, não teríamos a identidade negra agindo de forma tão dinâmica e se reinventando na sociedade brasileira”, diz.

Para além da escola, Nilma aponta espaços, como o movimento negro e os aprendizados da militância política, os movimentos culturais e o universo da cultura negra juvenil, como o movimento hip hop e o reggae. Também destaca as trançadeiras em domicílio e os salões étnicos. “Os salões étnicos são mais do que espaços comerciais. São, também, espaços políticos e educativos que investem em uma valorização estética, identitária e política do povo negro no Brasil”, revela.

Neusa acredita ser necessário o processo de auto-aceitação. Mas espera que não demore anos, como aconteceu com ela. “Deve ocorrer principalmente na infância. Aceitar a si mesmo e suas características físicas é um caminho para a autovalorização, que abre espaço para que a criança, o jovem possam se sentir mais seguros para enfrentar o racismo no dia-a-dia”, diz.

Para Neusa, o importante não é o que se faz com o cabelo, mas por que se faz. Rastafári, natural, chapinha ou bobs, não importa. Desde que seja uma postura de quem está decidindo sobre si mesmo(a) e não de quem está agindo por vergonha do que é. “Experimentem novos penteados. Há salões especializados em diversos tipos de tranças, dread locks, black power, ousem. Experimentem usar seu cabelo natural. Não garanto nada, mas, talvez, descubram um novo estilo de se pentear, de se mostrar. E talvez gostem disso. Leiam, informem-se, conversem sobre o assunto, reúnam-se e se dêem força. E, principalmente, não fiquem calados diante do racismo.” Está aí a dica para os(as) jovens. É por experiência própria.

Consultoria: Athayde Motta, Cristina Lopes e Fernanda Felisberto.

Publicado em 28/11/2006. No site do www.ibase.org.br

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